quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

ABÍLIO PACHECO


Sinfonia
Por conta de crescente aperto nas finanças, pouco a pouco tiveram que
se desfazer dos móveis e utensílios, a começar pelos menos essenciais. Até que
venderam o piano de gabinete, que ocupava espaço, mas preenchia o tempo
vão com ledos solfejos e suaves sustenidos.
No lugar, puseram uma mesa sem graça de madeirite a esgarçar-se.
Nela, a pianista se punha como antes. Nos mesmos horários, deslizava os
dedos – com a costumaz habilidade – pela superfície de teclas imaginárias.
Inclinava a cabeça, fechava os olhos, balançava o corpo, às vezes cantarolava,
mas na mesa não resvalava, tocava ou triscava.
Os demais da casa mantinham a mesma rotina. Punham-se calados ao
chá ou café, ao tricô ou crochê, ou apenas folgavam deveras ao som do
instrumento ausente.
Não custa que logo, logo, empolgada e distraída, a moça tocou mais
forte o teclado. A melodia inebriou mais ainda os presentes. As notas
trouxeram não sei que contentamento. Preencheu espaços da casa e
transbordou pela confusa e incrédula vizinhança.

A Hora da Estrela
À Clarice, pelo título emprestado
A alma era de atriz. O gesto também. E a impostação da voz!...
Qualquer dia teria sua chance. Recebeu com naturalidade o convite para
um musical.
Conhecia bem seu papel e agiria com desenvoltura.
No instante exato, atirou-se da frisa.

Nenhum comentário: