segunda-feira, 15 de março de 2010

POR UM SEGUNDO MANIFESTO ANTROPÓFAGO


POR UM SEGUNDO MANIFESTO ANTROPÓFAGO:

A arcada dentária é característica universal que liga pela mordida todos os povos da terra. Portanto o movimento dialético entre o que está fora e o que está dentro resolve-se na devoração, força motriz do desejo ou luz do anjo caído que institui o canibalismo nas hostes do céu. Nossa fome despreza o sucesso.

Este não é um manifesto brasileiro, tão pouco latino americano ou europeizante. Insistimos em desconhecer o fronteiriço. A Revolução caraíba é a vingança suprema contra a civilização e embora sua geografia metafórica envolva a rebelião dos povos colonizados, a sua extensão e o seu significado desconhecem limites territoriais. Não somos nacionalistas. Não herdamos paranóias modernistas para uma cultura “ puramente brasileira “: Trata-se de uma excrescência que alimentou tanto fascistas quanto stalinistas e que portanto deve ser varrida para fora do espírito.

Na segunda metade do século passado fizeram em grande parte a leitura concretista da antropofagia. Nós fazemos a leitura surrealista acrescida das experiências de contracultura. Exercemos a deglutição e ambicionamos a reestruturação da contracultura enquanto a peste desconstrutora da civilização burguesa. Nossa leitura antropofágica no tocante ao Surrealismo não se confunde com o movimento surrealista: Este é especifico. Apenas reivindicamos sua influência no plano espiritual e da criação. Julgamos que as revelações surrealistas traduzidas brilhantemente no pensamento de André Breton, anunciam a idade de ouro: Esta é fundada na poesia, no amor e na liberdade. Para nós o Surrealismo não é pré-antropofágico, mas um programa revolucionário dotado de particularidades que está em franca sintonia com o projeto da antropofagia.

A europeização do mundo corresponde a uma crescente doença que ameaça a dignidade humana. Herdada pelas culturas dominantes das Américas, a civilização é felizmente golpeada por uma oposição mágica: Nas matas e nas visões dos curandeiros, nas senzalas e nas sarjetas localiza-se a negação mais radical do mundo civilizado. O relex indígena e a consciência rítmica afro. É o Beat, o Beat, o Beat, a batida e a busca pela bealtitude que Allen Ginsberg, Jack Kerouac e outros anjos perdidos estabeleciam no século passado. Beat ou improviso, cabeça antenada e quadril que se meche para além dos limites dos Estados nacionais. Salve a sarjeta continental das Américas!

Se a contracultura implica em opor-se(sem nenhuma forma de sistematização prévia) aos valores das instituições que fundamentam a cultura dominante, então ela é uma constante histórica. O nosso tempo não é exceção a isso. Contracultura envolve uma produção que está a margem do reconhecimento oficial. Num mundo marcado pela pluralidade e pela fragmentação, apresentamos o valor poético que é necessariamente fora da lei(afinal, este mesmo mundo é controlado, mesmo em sua aparente diversidade, pela tirania do mercado e da lógica). Não existe verdade absoluta, mas interpretação. Há um homem soterrado nos escombros das determinações psicológicas e culturais do colonizador. Nosso objetivo não é outro senão mostrar-lhe a saída em direção a luz da revolta.

A contracultura popularizou-se nos anos sessenta mediante a evidência midiática. Porém, de modo algum ela restringe-se aos estereótipos daquela época: A experiência contracultural passa pelo cultivo das tradições e não pela repetição das formas. Quarenta ou cinqüenta anos na História da cultura não são nada. Novo contexto: Releitura. Numa clara tendência que obedece ao contexto pós-tropicalista, rejeitamos com toda a violência necessária qualquer forma de centralização de poder, expressa por exemplo na estrutura de grupos. Devoramos nossas referências mas não aceitamos lideres para a tribo. Não somos marmita ou sanduíche: Ao provarem de nossa carne avisamos as senhoras e os senhores, que sentirão o gosto da mandioca braba.

Não tendo a contracultura uma forma definida, as vertentes que colaboram historicamente para a sua constituição são muitas. A devoração destas não implica em uma fusão de ordem estetizante, mas na ética do espírito iconoclasta. Somente a busca pela liberdade fundamenta a reflexão e a criação artística. Para além da estética existe a subversão(ao mesmo tempo não compactuamos em grande parte com os instrumentos políticos tradicionais utilizados pela esquerda em geral).Restituindo as energias interiores do homem, a nossa visão antropofágica é contracultural na medida em que desmente as falsas noções entre “cultura superior” e “cultura inferior”. Perante a sociedade do espetáculo ela é uma das principais forças de oposição.

Não somos modernos, nem pós-modernos. No banquete platônico de 22, preferimos as sobras das metralhadoras, a rajada que pulsa para além dos salões, das butiques e dos gabinetes. Longe de nós carregar o peso do Modernismo. Aliás, mesmo com o hábito saudável do escândalo os modernistas eram nacionalistas e esteticistas. Por isso a antropofagia é a novidade, ela foi teorizada hoje em 1928. Trata-se de uma postura selvagem e irreverente, que apóia-se na ousadia e na barriga de Oswald de Andrade. Não somos proprietários do pensamento antropofágico e como antropófagos não são dados a oficialidades, reservamo-nos a nossa leitura particular do canibalismo. O antropófago que se alimenta do Surrealismo e da Contracultura tem visões soberbas: Ele vislumbra cipós convulsivos entrelaçados nas pernas da cidade. Com o sexo dos edifícios descobertos e abrindo picada pelo mato dos sentidos, ele encontra na avenida o amor e o carnaval.

A crueldade de Antonin Artaud é expressão do instinto caraíba: Arrancar roupas, peles, nervos e pedaços de uma sociedade falida. O ritual. A crueldade enquanto meio de transfiguração do tabu em totem, e a vida como a principal obra do artista. A rejeição da família e do amor no contexto burguês. A GRANDE FAMÍLIA X AS RELAÇÔES MONETÁRIAS DO AFETO. O AMOR ENQUANTO PESTE, VENENO SOMBRIO X CONFORMISMO SOCIAL. A autopsia dos desejos e dos sentimentos e a aceitação dos excrementos, do suor, dos cheiros e das texturas como néctar mais precioso para a liberação sexual(cósmica por excelência). O corpo sem órgãos, despido dos conceitos e das afirmações físicas. O amor pelo sexo e pelo estômago com a mesma intensidade. O desejo das entranhas tão intenso quanto o desejo da saliva. Desejar a totalidade do outro. Abraçados em torno da fogueira, na linha direta de Xangô, com seus raios abrindo os trabalhos. A copulação entre o batuque, o jazz, as guitarras distorcidas e todos os sons povoados pelos gritos das virgens de Eros.

Eu existo em MIM, no outro e nas possibilidades gastronômicas do espírito e da carne. Uma ode à Santa Carnívora! A benção ao humano como possibilidade de superação das crenças sem tempero. Moquecas, picos, épicos e visões. A pele enquanto casulo deixa livre o espírito para sensações e obscenidades infinitas.

As ervas de defumação, as danças em volta do caldeirão, a regeneração do som, a palavra como manifestação sonora, a abolição da racionalidade e a crença na realidade absoluta. Tudo é som e som se sente, se toca, se exprime e comprime. O gesto eterno da mastigação. O infinito exercício do maxilar e das papilas gustativas enquanto meios de reação à estagnação dos que se contentam com as academias e os fast-foods do espírito.

A opção anárquica. O matriarcado enquanto uma era de esperanças. A utopia exige uma resolução prática. Não somos um movimento artístico. Lição Dada: A destruição permanente dos valores burgueses. Sempre guardando distância entre a senzala e a Casa grande, seguimos. A sarjeta e o holofote. Desenvolver uma iluminação própria. O automatismo psíquico no verbo, na imagem, na cena. O DENTE E O SONHO, A SELVA E A MARGINÁLIA.

Degustar o infinito. A vida enquanto deglutição da poesia.



Bruno Zambelli/ Afonso Machado

Campinas-SP, 2009/tela: salvador dali

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