sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CINEMA


HIROSHIMA, MEU AMOR
A Memória Inconsolável

Guido Bilharinho

De tempos em tempos, alguns filmes causam impacto, introduzindo inovações formais, temas inexplorados ou perspectivas inusitadas no trato de assuntos já repisados por inúmeros artistas. Enfim, introduzem e praticam novas maneiras de fazer (forma) e de ver (significado) o cinema e a vida.
Desde Méliès, nos primórdios do cinema ou mesmo no ato de seu lançamento pelos Irmãos Lumière, passando por diversos outros cineastas, a exemplo (apenas alguns poucos e notórios) de Griffith, Eisenstein, a vanguarda francesa e alemã da década de 1920 e Welles, o cinema vem sendo submetido a periódicas ampliações de suas possibilidades.
É o caso de Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, França, 1959), de Alain Resnais (1922-), baseado em texto do nouveau roman francês de Marguerite Duras, rico de nuanças e aspectos que abrangem desde seu fio central temático, o bombardeio atômico de Hiroshima, a presença do passado no presente ou a unidade do tempo até a estruturação fílmica propriamente dita.
É filme (de e) sobre o amor, tratado, porém, de maneira visceral e contemporânea. O romantismo e o pieguismo que vicejaram em épocas anteriores são substituídos pela verdade e significado da simpatia que aproxima, do sentimento que une e da convivência que solidifica os liames entre dois seres humanos. Como as notas musicais submetidas ao toque e pressão dos dedos do pianista, os graus e variabilidades da atração, relacionamento e necessidades mútuas dos parceiros subordinam-se à aguda sensibilidade do cineasta, que lhes infunde consistente conteúdo humano.
Todos os tatos, contatos, expressões, diálogos, atitudes e posturas pautam-se pelas sutis tonalidades e variações de acordes musicais na leveza, flexibilidade e imponderabilidade do som, que, à semelhança do pensamento, do sentimento e das emoções, não se concretiza materialmente, conquanto se manifeste fisicamente.
O tratamento poético e musical e as mais altas formas de formulação artística casam-se com sua materialização plástica e visual, formando indissolúvel unidade estético-cinematográfica.
Se a exteriorização artística, sonora, verbal e imagética acompanha e pauta-se pela maior ou menor intensidade, sofisticação e imprevisibilidade, o estado de espírito e o teor dos momentos vividos e compartilhados pelos protagonistas variam e alteram-se de conformidade com seus momentâneos e impressivos significados num desdobramento atiladamente procedido desde as cenas iniciais de felicidade, íntima satisfação e alegria até o tormentoso instante da separação, que diacronicamente refletem os instantes vividos e as transformações operadas nos estados de espírito e nas expressões fisionômicas, estendendo e atingindo todo o aparato cinematográfico que os configura, conduz e serve de envoltório e sistematização.
Décors, paisagens, luminosidade, ângulos, enquadramentos e a demais mobilidade da câmera modelam-se pela imponderável (ou inexorável) transfiguração do cerne temático.
Os dois tempos amorosos nítidos em que se reparte o filme refletem-se com igual intensividade em momentos distintos e opostos em seu clima humano e delineamento ficcional.
Nesse percurso de densa e intensa vivência humana sentimental procede-se orgânica junção do passado com o presente não apenas como simples e usual retrospecto da memória, mas, como incorporação no agora dos sentimentos e perturbações emocionais e psíquicas pretéritas, presentificando-o num processamento poético e fílmico balizado pela essencialização da mais profunda e dolorida substância do humano, de seu modo de ser, existir, agir e reagir aos impulsos, solicitações e imposições íntimas e em seu posicionamento frente à realidade objetiva, seja na fruição das oportunidades que oferece, seja no enfrentamento dos obstáculos e desditas que desencadeia, num fusionamento temporal refletido na repetição das mesmas alegrias e dores.
Esse processo dinâmico, iterativo e interativo perfaz e compõe a própria estruturação fílmica.
A hábil utilização dos primeiros planos iniciais é ponteada pelas referências simultâneas ao bombardeio atômico de Hiroshima e sua ainda ocorrente consequência, desglamourizadas em apropriadas imagens e textos que objetivamente retêm e expressam o horror do maior atentado e carnificina da História, no qual, em apenas 9 (nove) segundos morreram 200.000 (duzentos mil) pessoas e outras 80.000 (oitenta mil) ficaram feridas. Não há outro exemplo de maior desumanidade e violência, que gerou, a partir daí, no sentir da protagonista, “o começo de um medo desconhecido”, resultando uma “memória inconsolável”, uma “memória de sombras e pedras” nunca mais apagada da História das atrocidades humanas.
(do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)
Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, foi candidato ao Senado Federal e editor da revista internacional de poesia Dimensão, sendo autor de livros de literatura, cinema e história regional.

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